A Bolívia se prepara para as eleições gerais de 17 de agosto em um cenário de profunda divisão na esquerda e ascensão da direita, que lidera as pesquisas de intenção de voto. O racha no governista Movimento ao Socialismo (MAS), protagonizado pelo ex-presidente Evo Morales e o atual mandatário, Luis Arce, fragmentou a base governista e abriu espaço para a oposição. Enquanto Morales, impedido de concorrer, prega o voto nulo, o empresário Samuel Doria Medina desponta como favorito, ameaçando encerrar um ciclo de quase duas décadas de governos de esquerda no país andino. Além do presidente e vice, os bolivianos elegerão 130 deputados e 36 senadores.
A crise que pode consolidar o fim da hegemonia do MAS, partido que governa a Bolívia desde 2006, se intensificou após o retorno de Evo Morales do exílio. Eleito em 2020 com 55% dos votos, o atual presidente Luis Arce, ex-ministro da Economia de Morales, viu seu antigo mentor se transformar em um de seus principais opositores. O conflito culminou em uma fratura exposta no partido. Impedido pela Justiça de concorrer a um quarto mandato, Morales passou a atacar publicamente seus antigos aliados e a defender o voto nulo, enquanto enfrenta acusações judiciais, as quais ele nega, classificando-as como perseguição política. A tensão escalou em junho deste ano, quando bloqueios de rodovias organizados por seus apoiadores paralisaram parte do país por 15 dias, resultando em pelo menos quatro mortes.
A Esquerda Fragmentada
Diante dos constantes embates com Morales e da baixa avaliação de seu governo, impactado por uma crise econômica persistente, o presidente Luis Arce desistiu de concorrer à reeleição. Para seu lugar, indicou seu ex-ministro Eduardo Del Castillo, que registra apenas 2% nas pesquisas de intenção de voto, uma escolha que gerou descontentamento nas bases do MAS. Outra figura que surgiu como alternativa, Andrónico Rodríguez, atual presidente do Senado e ex-aliado de Morales, também enfrenta dificuldades. Após deixar o MAS para se candidatar pela Alianza Popular, Rodríguez, que já foi visto como uma opção viável, viu seu apoio erodir, caindo de 14% para cerca de 6% nas pesquisas, segundo o instituto Unitel, enquanto é constantemente chamado de “traidor” por Morales. A prefeita de El Alto, Eva Copa, também tentou se viabilizar, mas desistiu da candidatura presidencial em julho, alegando falta de maturidade de seu novo partido em nível nacional.
Segundo Clayton Mendonça Cunha Filho, professor de sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a crise atual é resultado direto do personalismo de Evo Morales. “Na ambição de ser o candidato eterno, Evo Morales implodiu o partido”, afirmou o especialista à Agência Brasil. Ele explica que o MAS, historicamente uma frente ampla que agrupa diversas tendências, corre o risco de perder sua relevância. “O maior partido com laços sociais efetivos e verdadeiramente nacional da Bolívia nas últimas duas décadas corre o sério risco de literalmente desaparecer caso não atinja a cláusula de barreira de 3% dos votos”, escreveu Cunha Filho para o Observatório Político Sul-Americano.
Direita Capitaliza e Lidera Pesquisas
Nesse contexto de pulverização da esquerda, a direita tradicional avança. Os candidatos Samuel Doria Medina (Alianza Unidad) e Jorge “Tuto” Quiroga (Alianza Libertad y Democracia) lideram as pesquisas. Juntos, somam aproximadamente 47% das intenções de voto, de acordo com levantamento do jornal El Deber. Para vencer no primeiro turno, um candidato precisa obter mais de 50% dos votos, ou 40% com uma vantagem de 10 pontos sobre o segundo colocado. Caso contrário, a Bolívia terá um segundo turno inédito, marcado para 19 de outubro.
Samuel Doria Medina, um megaempresário que já concorreu à presidência duas vezes, ficando em segundo lugar em 2014, é o atual favorito. Ele foi ministro nos anos 1990, período associado a privatizações no país. Já Jorge “Tuto” Quiroga é outro político experiente da direita boliviana. Foi vice-presidente em 1997 e assumiu a presidência entre 2001 e 2002 após a renúncia de Hugo Banzer. Em 2005, ficou em segundo lugar na eleição vencida por Morales. A provável chegada de um governo de direita ao poder representa um teste para a Constituição de 2009, que estabeleceu a Bolívia como um Estado Plurinacional. No entanto, o professor Cunha Filho avalia que a própria fragmentação política pode impedir mudanças drásticas, forçando o novo governo a compor com outras forças para governar.